Agente cultural, escritora e professora no distrito de Piedade do Paraopeba em Brumadinho/MG, Tânia Caramaschi possui uma extensa trajetória em projetos educacionais e culturais.
Há 45 anos trabalha com diferentes modalidades das artes, dando aulas de coral, dança e artesanatos na região. Além disso, durante 14 anos realizou trabalhos associados à Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) em países africanos. Sobre esta experiência, está em processo de escrita do livro “Guerras”.
Na entrevista realizada pelos arte-educadores Fernanda Nascimento, Priscila Mathilde e Pablo Araújo descobrimos a relação de Tânia com Piedade e compreendemos a sua importância para o distrito. Leia abaixo!
Vim para cá a convite, para fazer um trabalho com o grupo que participava. E quando fiquei conhecendo Piedade do Paraopeba, pensei: esse aqui é o meu lugar!
Você poderia nos contar sobre o seu trabalho na região?
Tenho uma parceria com a Prefeitura, em que são dadas aulas de música. Também possuo um trabalho particular para as pessoas que fazem parte deste projeto. São oferecidas aulas de instrumentos, de dança — do ventre, flamenco, ballet contemporâneo e hip hop — e corais infantil e da terceira idade.
Conte um pouco da sua trajetória para nós.
Desde criança estive ligada às artes, à música. Comecei a estudar piano com cinco anos e fiz conservatório de música. Depois, estudei Educação Artística na Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG).
O interessante é que ainda como estudante comecei a participar de vários projetos em ONGs e associações relacionadas à área social. Com muita dificuldade, trabalhando com pessoas carentes, mas descobrindo valores tremendos.
Já estive fora do Brasil por 14 anos trabalhando com a Organização das Nações Unidas (ONU) na África. O primeiro país em que estive foi Angola. Foi uma experiência marcante porque trabalhei com mutilados da guerra civil. Nunca pensei que pudesse ir, mas fui com um grupo de profissionais brasileiros.
Lá se criou um centro de profissões e ofícios por várias empresas estrangeiras com apoio das Nações Unidas. Nós, professores, éramos responsáveis por algumas turmas. Era muito gratificante ver a construção desse trabalho. Até hoje me comunico com pessoas de lá e tem gente que se tornou profissional da música. Isso é muito bacana!
E em Piedade, como o seu trabalho foi desenvolvido?
Em Piedade não foi tão diferente. Quando vim fazer uma apresentação com o grupo de seresta que eu tinha, composto por pessoas da 3ª idade de Belo Horizonte, o padre da época ficou encantado. Então, ele perguntou se eu podia vir para cá e dar um curso.
Neste ano [2013], a Igreja de Nossa Sra. da Piedade completava 300 anos. A ideia era formar um coral para as festividades do Jubileu. Com isso em mente, formei um coral misto com pessoas da terceira idade, crianças e jovens. A comunidade gostou demais do trabalho e as pessoas começaram a me ligar e mandar mensagem, me convidando para vir para cá.
Fiquei quase seis meses indo e voltando entre Belo Horizonte e Piedade. Depois conheci o Comitê Local e a Vallourec, que me apoiam muito com o coral. Temos um patrocínio, principalmente para as apresentações e viagens, porque a gente começou a viajar demais, ir para festivais e receber convites.
Quantas pessoas fazem parte do coral? E como são escolhidas as músicas e arranjos do repertório?
O coral começou com 46 pessoas e foi diminuindo. Hoje em dia, temos de 18 a 25 participantes. Infelizmente, há alguns que já nos deixaram, outros que ficaram doentes… Mas a ideia é que aumentemos a turma novamente.
Tudo eu faço junto com os participantes. Dos oito anos de trabalho, durante uns quatro anos nós ficamos fazendo pesquisas para ver o que o pessoal queria cantar e depois desse tempo fui descobrindo o que agradava a todos do coral.
Comente sobre sua relação com a comunidade.
Tenho amor pelo barroco e pela história mineira porque estudei em Ouro Preto. Sou apaixonada tanto por lá quanto por Mariana. Toda minha parte artística e de conhecimento foi desenvolvida lá, durante meu período de estudos. E quando cheguei aqui, encontrei uma mini Ouro Preto e achei esse lugar perfeito. Quando eu conheci a história de Piedade então... Achei ainda mais fantástico!
Quando os bandeirantes saíram de São Paulo em busca de ouro, queriam pedras preciosas. A Serra de Piedade tem uns pontos brilhantes que refletem. Os índios que habitavam a região contavam sobre esse brilho — hoje se sabe que é o minério — que, na época, pensavam ser as pedras.
Por esse motivo, os bandeirantes foram atraídos pelas pedras preciosas, diamantes e só então eles descobriram o ouro. Eles passaram um bom tempo aqui explorando as minas. Acabando o ouro, foram descendo e pararam em Ouro Preto. Lá era maior e a cidade começou a se desenvolver e se tornou a capital do estado de Minas Gerais. Mas tudo começou por aqui.
O que eu aprendi com esses 45 anos de estrada é que a troca é constante. Temos que estar abertos a receber e a dar em qualquer circunstância, principalmente com os alunos.
Você poderia nos contar sobre as manifestações culturais de Piedade do Paraopeba?
Aqui é um lugar totalmente religioso, de tradições católicas. E isso vem desde o quando os bandeirantes vieram para cá e começaram a trabalhar na região. Eles mandaram trazer a imagem de Nossa Sra. de Piedade, que veio com todas as honras e foi colocada na igreja que hoje leva o nome dela — e na época estava em construção. Desde então, tudo gira em torno dessa história.
Paralelo a isso tem as Guardas de Moçambique. Os escravos que vieram para cá e que construíram a Igreja de Nossa Sra. de Piedade não podiam entrar nem se manifestar. Então, foi dado a eles outro espaço, onde eles construíram a Igreja de Nossa Sra. do Rosário.
Desde então, existem esses dois polos bem fortes. Um é a Guarda com as tradições africanas e o outro a devoção a Nossa Sra. de Piedade, que é a tradição mais europeia. As festas dessas duas tradições acontecem em datas específicas durante o ano e são muito fortes aqui.
Conte um pouco sobre a sua experiência nos países africanos em que esteve.
Pelo fato da minha família ser palestina, quando cheguei na África fui tratada como filha ou descendente de escravos, devido à cor da minha pele, mas isso não é bem recebido lá.
Existe um preconceito muito grande quanto a ser mestiço. Para eles, os mestiços e mulatos são descendentes de pessoas que aceitaram ser escravizadas, que não lutaram. Escutei muitas vezes: “Ah, se tivesse acontecido comigo, eu preferiria morrer”.
Com o tempo, as pessoas que viviam onde eu trabalhei foram conhecendo a minha história e mudando suas visões a meu respeito. Nunca tinha refletido sobre o preconceito com pessoas que possam ter sofrido uma mistura, e isso foi um impacto muito grande. Quando cheguei aqui, pensei: “Preciso trabalhar, escrever e contar sobre tudo isso”.
O livro se chama “Guerras” no plural porque, paralelo à guerra civil que acontecia quando eu estava lá, existia também uma guerra pessoal de cada uma das pessoas com quem convivi. Todo mundo fugia de alguma situação e a gente se encontrou lá, vivendo uma guerra e lutando uma guerra que não era a nossa.
O Conto de todos os cantos sobre Brumadinho conta com o patrocínio da Vallourec via Lei de Incentivo à Cultura, e com o apoio do Comitê Local de Piedade do Paraopeba e da Associação dos Moradores da Comunidade de Suzana (AMOCOS).
Комментарии